quarta-feira, 7 de julho de 2010

Vida privada

Conto dedicado a Dôra Limeira, escritora, que aderiu à campanha 2 contos por 1 conto.


Dizem que esta história aconteceu lá pelas bandas do sertão da Paraíba, perto de Cajazeiras, na década de 1940. Conta-se que certa família, os Junqueiras, vivia da criação de cabra e galinhas. Não possuía riqueza e, como todo bom nordestino abençoado pelas privações, não tinha banheiro em casa. Faziam as necessidades no mato, perto do curral das cabras; foi assim durante muitos anos até o dia em que a avó fora picada por uma cascavel e teve que amputar a nádega esquerda. A família, composta de 27 pessoas e cuja a avó era o ente mais velho e mais querido, decidiu dar à pobre senhora o mínimo de dignidade possível, pelo menos na hora das evacuações, no fim de sua vida.

Com muito sacrifício, juntaram dinheiro e contrataram o melhor mestre de obras da região, a fim de que se fizesse, anexo ao casebre, uma latrina. Um pedreiro, que se dizia formado pela Faculdade de Ciências Ocultas e Letras Apagadas, foi chamado para dar início às obras. Encomendaram o melhor material: zinco, para o teto; 1 saco de cimento, para o piso; 100 quilos de cal, para ser usado no lugar de descarga e tábua de macambira, para as paredes. Com parcos recursos, a construção demorou 2 anos e 7 meses para ficar pronta. No dia 12 de agosto, foi marcada a inauguração. A família, satisfeitíssima, matou 10 cabras e 25 galinhas, para um banquete, e chamaram um dos dois vereadores locais, para que este cortasse a fita inaugural. Com muita festa, a latrina foi inaugurada. A avó, muito devota, colocou uma plaquinha na porta, com os seguintes dizeres: "Ao entrar, Deus te acompanhe; ao sair, Deus te abençoe".

Ficou decidido que a primeira pessoa a usar a nova construção seria a velha. Foi aí que começaram os problemas, pois a pobre senhora sofria de constipação e, a despeito das buchadas, sucos de ameixa e quilos de alface, a avó demorou 7 dias para ir ao banheiro. No sétimo dia, de madrugada, a velha sentiu vontade de urinar. Ficou tão feliz, que foi ao banheiro com um terço na mão, rezando uma novena em agradecimento. Ao entrar e se acocarar, ficou tão contente pelo fato de não sentir respingar urina em suas canelas, que teve um ataque cardíaco fulminante e caiu no poço da latrina. Demoraram 43 dias para encontrarem o cadáver da velha, coberto de fezes, dentro do buraco. Uma feliz coincidência, pois a nora viu, depois de defecar, a dentadura da pobre senhora. De início, ficou horrorizada, pois achou que a merda lhe sorria. Só depois de apurar o olhar, viu o corpo da sogra, já em avançado estado de decomposição. Fizeram o velório de caixão fechado, pois, àquela altura, não souberam diferenciar o que era bosta e o que era a velha e, por via das dúvidas, enterraram tudo junto. Um engraçadinho disse que não era um enterro, mas uma descarga. Em respeito à família, o delegado deu voz de prisão ao pilheriador.

A latrina ficou amaldiçoada, desde então. Toda pessoa que ia aliviar a bexiga ou o intestino, ficava presa por, no mínimo, quatro horas. Tanto, que sempre ia fazer as necessidades com uma marmita, para almoço ou jantar, dependendo da hora. A danada da porta parecia abrir-se quando queria. Começaram a dizer que o espírito da velha assombrava o banheiro. Chamaram um padre, que ficou de consultar o Vaticano acerca de tal fato. Semanas depois, o cura chegou dizendo que não poderia exorcizar a latrina, pois a Santa Sé, em seu código canônico, mencionava quartos, salas, cozinhas, quintais e até penicos, mas não fazia menção a latrinas. Recomendou uma rezadeira ou um macumbeiro, que eram quem entendiam daquelas crendices populares. Optaram pela primeira.

Dona Josefa, amiga de infância da falecida senhora, chegou com um galhinho de arruda e um saco de sal grosso. Depois de muita cantoria e conjurações, a idosa solenemente, com a voz da sabedoria que somente incontáveis décadas podem trazer, disse: "Traz o menino mais novo". Sebastiãozinho, o caçula, foi escolhido como cobaia, porque estava há 5 dias sem evacuar. Trancada dentro da latrina, a pobre criança, morta de medo, naturalmente borrou-se toda. Misteriosamente, naquela ocasião, a porta não se trancou sozinha, e encontraram o menino, minutos depois de entrar, banhado na própria merda, lívido de medo. A latrina, de amaldiçoada, passou a ser lugar de peregrinação. Diziam que era milagrosa e curava todos o males: espinhela caída, bico de papagaio, anemia, bicheira, unha encravada e, é claro, prisão de ventre. As pessoas começaram a vir de todas as regiões, para pedir milagres e deixar ex-votos na latrina. Tinha de tudo: orelhas, pernas, barrigas, olhos, miniaturas de casas, de burros e até um pênis, feito de mandioca, depositado por um velho que se curou de impotência e foi pai aos 97 anos. A família, obviamente, aproveitou-se do fato e começou a fazer fortuna. Compraram um penico muito bonito, de porcelana, branco, com uns desenhos de vaquinhas e cabritinhos, e já não usam mais a latrina.

Hoje, se você perguntar aos mais velhos, há, na Paraíba, o lajedo de pai Mateus, a cruz da Menina e a latrina da Velha. Lugar de maravilhas, onde a religiosidade popular encontra sua forma máxima. A velha, agora, espera na fila da beatificação. Dizem que o papa considera seriamente o pedido de passá-la direto à categoria de santa.

9 comentários:

FOXX disse...

acho q esse meu amigo dá pra escritor, viu?

hauahauhauahau

RLCA disse...

"Sua literatura, marcada pelo politicamente incorreto e pelo humor escrachado..."

RLCA disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Muito obrigada, Moisés. O conto ficou muito interessante, principalmente em seus lances escatológicos. Abraço.

Dôra Limeira

Rebecca Bandeira disse...

Muitooo boaaa, ri demais aqui. tinha que ser meu primo. Adoreiii!Parabénss!

Beijos da prima, Rebecca.

Antonino disse...

Você tá mais para humorista que para contista kkkkk
Muito bom, parabéns!

Moisés disse...

Antonino, subjetivamente, destruindo meus sonhos de escritor e me mandando ir fazer stand up comedy.

=~

Naraiana Santos disse...

O que a dona Josefa disse pra Velha na latrina?

Naraiana Santos disse...
Este comentário foi removido pelo autor.