segunda-feira, 5 de julho de 2010

A mãe

Conto dedicado a Ramon Limeira, oficial de chancelaria do Itamaraty, o qual aderiu à campanha 2 contos por 1 conto.



Suzana depositou as flores no túmulo da mãe morta. Há exatos sete anos, sempre nessa data, repetia mecanicamente o ato. Era um hábito anual singelo: no aniversário da morte da Velha, comprava rosas, punha-as sobre o túmulo e ia embora. Simples assim. Naquele dia, entretanto, ela parou, para olhar os jambeiros, que estavam apinhados de frutas. Lembrou-se imediatamente de ter ouvido, na infância, que "o melhor jambo é o dos cemitérios". Achou engraçado aquilo, porque parecia ser verdade. Pensou que gosto teria a última das misérias humana e teve vontade de experimentar uma daquelas frutas. Será que sentiria o gosto da mãe? Se sim, deveria, então, ser amargo e, muito provavelmente, venenoso. Não gostava da Velha. Assim, quebrando sete anos de um ritual meticulosamente repetido, Suzana sentou-se em frente à cova de sua genitora, pela primeira vez.

Aos 39 anos, estava divorciada e não tinha filhos. Perdera o pai muito cedo. Matara-se. Ouvia a Velha dizer que a única herança que o infeliz lhe deixara fora uma filha imprestável e um carro. O mesmo carro que, muitos anos depois, justiçara Suzana. A mulher não entendia o porquê do desprezo da mãe. Deveria ser amada, pois era filha única e, em tudo, lembrava as feições da Velha. Quem não ama o próprio retrato? A mãe era vaidosa. Amava-se por demais. Como não poderia amar aquele pequeno arremedo de si? Suzana se esforçava, desde cedo, para agradar imensamente sua mãe, para receber não amor, mas o mínimo de desprezo possível. Foi a melhor aluna da sala durante toda sua vida escolar, mas a Velha, essa maldita, nunca comparecia às festinhas da escola. De fato, nenhum de seus colegas vira sua mãe. Chamavam-na, por conta disso, de "filha de chocadeira".

Sem o amor materno, Suzana buscava conforto nos livros. Passou a odiar Victor Hugo depois que leu "Os Miseráveis". Não entendia por que Fantine vendera os dentes, para tratar da falsa doença de Cosette, uma vez que sua mãe raramente dava-lhe um sorriso. Tinha raiva dos dentes da Velha. Tanta raiva, que, no velório, às escondidas, retirou a dentadura da morta, a fim de que a desgraçada não ousasse sequer sorrir na sepultura. Em certa ocasião, ganhou, de um namorado, o livro "A mãe", de Gorki. Jogou o folhoso, no lixo, assim que chegou em casa. Agora, odiava a mãe, o autor soviético e o desavisado namorado. Apaixonou-se por Poe, quando leu "O coração denunciador". Chegou a sonhar, por dias, que, no lugar do senhorio assassinado, estava a mãe. Porém, Suzana não tinha instintos assassinos. A despeito do ódio pela Velha, era uma pessoa boa.

Um dia, enquanto estavam jantando, a mãe perguntou quando se casaria, porque "uma mulher solteira, nessa idade, é um fardo para a família". A Velha lhe deu uma idéia. Dezoito meses depois, Suzana estava casada. Dezoito meses depois, Suzana estava divorciada. Descobrira que não poderia ter filhos. No lugar de infelicidade, a mulher recebera a notícia com alegria, pois sentiu que, com isso, quebrava-se uma maldição. Estava finda a possibilidade de ser uma mãe como a Velha. O marido, obviamente, não entendeu e foi procurar um ventre que pudesse fertilizar com sucesso. "Que tenha filhos como um coelho", pensou Suzana. Não se importava. O casamento serviu para tirar-lhe da casa materna. Foi, antes de tudo, uma salvação, uma alforria.

Há exatos sete anos, quando estava no trabalho, Suzana recebeu a notícia da morte da mãe. A Velha saíra no carro deixado pelo pai, e um caminhão, parece, esmagou o veículo contra uma árvore. Ironicamente, um jambeiro. A morte da mãe trouxe um imenso alívio e sete dias de licença do serviço. Foi um dos poucos benefícios que recebera da Velha. Sete dias de descanso. No velório, não derramou uma lágrima e teve que controlar a vontade de cantar. Lembrou-se de Chico Buarque e, mentalmente, cantarolava "Vai passar". Estava livre.

Suzana olhou para o túmulo ao lado. Uma cova simples, com uma cruz azul, de madeira, a inscrição parcialmente desgastada pelo tempo e pelo abandono. "Não sei o quê da Silva", leu Suzana, pois não dava para saber o primeiro nome. Lembrou-se da vaidade da mãe, dos anos de desprezo, da falta de afeto, das palavras amargas, dos abraços ausentes e do amor que nunca recebeu. Levantou-se, retirou as rosas do túmulo da Velha e depositou-as no do "Silva" cerimoniosamente. Suzana nunca mais voltou ao cemitério.

10 comentários:

Roger disse...

E os Jambos? Não comeu?
Muito bom o blog, esteticamente agradável e com conteúdo. Uma raridade.

Antonino disse...

Muito bom texto! Nunca faltará leitores para bons textos! A mim já cativou. Abraços!

Anônimo disse...

Não menos que genial.


Danilo R.

Eveline disse...

Adorei o texto. Isso tudo só me lembra o fato de termos que gostar de certas pessoas. Somos convencionados a sentimentos por uma questão de sangue ou de mera convivência. Tudo, ou quase tudo é convenção. Alguns sentimentos são impostos e outros são castrados. Não me importo, quero sentir.
Seu texto é muito bem escrito.
Vou linkar seu blog no meu.
Um abraço, moço!
=)

FOXX disse...

preciso comprar meu texto tb

Anônimo disse...

Conto sensacional, com final de gênio. Parabéns. Depositei 5 reaia hoje, para sua campanha de arrecadação de fundos. Abraço.

Dôra Limeira

RLCA disse...

Fiquei muito satisfeito. Concordo com Dôra: o arremate, algo difícil de se conseguir, essencial em contos, foi ótimo! Pedirei outro conto brevemente.

Laudelino disse...

E o jambo, tinha gosto da Velha?

Naraiana Santos disse...

Um passo rumo à liberdade para Suzana.

Naraiana Santos disse...
Este comentário foi removido pelo autor.