segunda-feira, 19 de julho de 2010

Correio da Hélade

Sem atendimento, mulher dá a luz em estábulo
O pequeno Jesus e sua família posam para nossa reportagem.
Nasceu, na madrugada de ontem, 25 de dezembro de 1, o filho do carpinteiro José e da dona de casa Maria. Esse seria apenas mais um nascimento, se não fosse emblématico do caos na saúde pública que assola nosso país. O pequeno Jesus, como foi batizada a criança, teve que vir ao mundo em um estábulo, pois o casal não conseguiu atendimento médico em nenhuma das maternidades de Belém. Segundo o casal, eles estavam na cidade, a fim de se cadastrarem no censo. José, que sobrevive de prestação de serviço, e sua esposa Maria peregrinaram de hospital em hospital até que a criança veio ao mundo. "Disseram-nos que não havia leitos", afirmou o chefe da família.

Malaquias Ben-Hur, secretário de saúde nomeado pelo Império, disse que a situação está periclitante: "Faltam leitos, os médicos são mal-remunerados e há muitos anos não há concurso público para provimento de vagas", afirmou o secretário. Procurado por nossa reportagem, o representante da capital do Império relatou que as verbas para a saúde aumentaram em trinta mil talentos de ouro somente neste ano e que o nascimento da criança, naquelas condições, havia sido um acontecimento fortuito. Desde que fora criado, o SVS, Salute Vnicvs Sistemi, tem atendido a cerca de 500 mil pessoas mensalmente.

domingo, 18 de julho de 2010

Nova seção: Correio da Hélade

Inauguro aqui mais uma seção em Tempos Interessantes. Correio da Hélade será uma paródia da grande imprensa, espetacularizadora de tragédias pessoais por onde grassam muitos Brunos, João Hélios e Isabelas. A intenção é popularizar, por meio do linguajar superficial das páginas policiais e colunas sociais, os grandes conteúdos das tragédias gregas e, posteriormente, dos fatos históricos de maior relevância. Espero que gostem. Eis, então, nossa primeira reportagem:
Policial: Tragédia e incesto em Tebas
Na foto: Édipo (esquerda), pivô da tragédia, trava diálogo com a esfinge. Imagem de arquivo.

Foi encontrado, na tarde de ontem, o corpo da rainha tebana Jocasta. Segundo informações, a rainha teria se matado após descobrir que casara com o próprio filho. Uma fonte da perícia, que não quis se identificar, informou que Jocasta foi encontrada enforcada em seu quarto e que havia manchas de sangue nos lençóis. Ainda segundo a referida fonte, seu marido foi o primeiro a encontrar seu corpo já sem vida. Desconfia-se que o sangue no quarto seja do rei. Segundo o delegado designado para o caso, Kratos da Silva, "não havia sinais de luta, e o sangue estava relativamente fresco, se comparado com o horário da morte da rainha". A polícia local apreendeu, nas imediações, um cego. Tirésias, como é conhecido, afirmou que não viu nada, o que as autoridades constataram obviamente ser verdade. A testemunha, entretanto, disse que sabia os reais motivos da tragédia e, após prestar esclarecimentos ao escrivão Sófocles, foi liberado pela polícia.

Segundo informações das autoridades locais, baseadas nos depoimentos de Tirésias, a testemunha não-ocular, o suicídio se deu após a rainha tomar conhecimento de que seu marido era, na verdade, seu filho, outrora rejeitado pelo pai e ex-marido da vítima. Édipo, o marido-filho, ainda não foi encontrado para prestar esclarecimentos. Suas três filhas-irmãs também estão desaparecidas, e suspeita-se de seqüestro ou coação. Procurada por nossa reportagem, a família real apenas afirmou que o acontecimento não abalaria o governo de Tebas e que a sucessão do trono ficaria a cargo de Creonte, irmão da rainha morta e, por hora, regente de Tebas. Os filhos homens do casal se recusaram a gravar entrevista. A polícia espera esclarecer completamente o caso em breve.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Eleições 2010


Com a proximidade do pleito que elegerá @ ocupante do cargo máximo do executivo brasileiro, Tempos Interessantes resolveu deixar claro que posicionamento político tomará e os motivos que nos levaram a tal escolha. Eis nossas razões:


1 - Dilma é a candidata de Lula. Melhor dizendo, Dilma é a candidata de um projeto de nação o qual está funcionando. Campeão de aprovação, o governo petista, a despeito de suas imperfeições, comum em um partido que se constrói dentro de uma democracia, gerou emprego, renda e, por conseguinte, cidadania. Em oito anos, vimos 13 milhões de empregos celetivos gereados, o fortalecimento do poder aquisitivo do povo, a consideração ao patrimônio estatal e aos movimentos sociais. Nenhum outro governo tratou, por exemplo, o MST com certo grau de respeito, apesar da reforma agrária ainda ser um problema brasileiro. Os juros baixaram, lembrando que, na época do nefasto FHC, eles chegaram na casa dos 40%. Deixamos de ser devedores ao FMI e, agora, somos seus credores. Fortalecido, o Brasil empresta dinheiro a quem antes nos via chegar com o pires na mão a mendigar bilhões de dólares.


2 - O governo Lula, cuja a candidatura de Dilma representa um expoente, trouxe seriedade às políticas sociais, entregando ao povo miserável, a possibilidade de fazer suas refeições. O Bolsa-Família é investimento em capital humano, pois obriga as crianças a ficarem na escola, e redistribui, para o povo, uma fatia do que é produzido e arrecadado no país. Reconhece que cidadania não existe, se persiste a desigualdade e a inacessibilidade ao mínimo de dignade de substistência. É dever do Estado, em minha concepção, impedir que seus cidadãos morram de fome. É isso que o Bolsa-Família, de fato, significa.


3 - Em oito anos, FHC, o nefasto, esfarrapou o ensino público superior, com congelamento de salários, profundos cortes de verbas e sucateamento das estruturas físicas do ensino. Quando entrei na Universidade, em 2001, não havia professores, espaço físico, energia elétrica, apoio a pesquisa e, por increça que parível, giz. Agora, oito anos depois, no doutoramento, presenciei o caminho inverso, com passos claudicantes, mas firmes, em direção a um ensino superior mais fortalecido.


4 - Esta é a razão menos importante, posto que é individual. Na minha postagem de apresentação, eu disse que já fui bem pobre. É verdade. Já fui bem pobre. Não me refiro à pobreza extrema, com escassez de víveres, mas a uma profunda diminuição nos padrões de vida de minha família. Após oito anos, FHC, o mais que nefasto, conseguiu reduzir meu estilo de vida ao básico. Isso significou ter comida à mesa, acesso restrito aos meios de transporte (eu me lembro muito bem ter que caminhar mais de uma hora, para poder ir trabalhar, pois, caso contrário, teria que ir caminhando para a universidade). Comprar livros era uma raridade, bem como ir ao cinema, viajar, sair aos fins de semana, entre outros. Para vocês terem uma noção, em oito anos de governo Lula, minha biblioteca passou passou de 30 para 600 exemplares. Alguma coisa mudou em oito anos. Mudou para melhor, porque não sou estúpido e sei perceber as diferenças gritantes.


Dilma Roussef é a continuidade de um projeto que, diferente do pensamento da direita, representada pelo candidato de FHC, o nefasto, reconhece o papel de todos dentro da sociedade. Significa reconhecer que há uma parcela da população excluída do processo produtivo e de distribuição. Significa, mais ainda e a partir disso, inserir setores da sociedade que, outrora, estavam relegados a um grau de cidadão de segunda classe. Dilma é Lula, e Lula é Dilma. Dilma e Lula são o Brasil com o povo. Um Brasil menos injusto, mais ciente das necessidades de seus cidadãos, um Brasil mais sério, mais rico, menos desigual, menos neoliberal, mais social. Em outubro, nas eleições, quero um Brasil decente, quero Dilma presidente.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Vida privada

Conto dedicado a Dôra Limeira, escritora, que aderiu à campanha 2 contos por 1 conto.


Dizem que esta história aconteceu lá pelas bandas do sertão da Paraíba, perto de Cajazeiras, na década de 1940. Conta-se que certa família, os Junqueiras, vivia da criação de cabra e galinhas. Não possuía riqueza e, como todo bom nordestino abençoado pelas privações, não tinha banheiro em casa. Faziam as necessidades no mato, perto do curral das cabras; foi assim durante muitos anos até o dia em que a avó fora picada por uma cascavel e teve que amputar a nádega esquerda. A família, composta de 27 pessoas e cuja a avó era o ente mais velho e mais querido, decidiu dar à pobre senhora o mínimo de dignidade possível, pelo menos na hora das evacuações, no fim de sua vida.

Com muito sacrifício, juntaram dinheiro e contrataram o melhor mestre de obras da região, a fim de que se fizesse, anexo ao casebre, uma latrina. Um pedreiro, que se dizia formado pela Faculdade de Ciências Ocultas e Letras Apagadas, foi chamado para dar início às obras. Encomendaram o melhor material: zinco, para o teto; 1 saco de cimento, para o piso; 100 quilos de cal, para ser usado no lugar de descarga e tábua de macambira, para as paredes. Com parcos recursos, a construção demorou 2 anos e 7 meses para ficar pronta. No dia 12 de agosto, foi marcada a inauguração. A família, satisfeitíssima, matou 10 cabras e 25 galinhas, para um banquete, e chamaram um dos dois vereadores locais, para que este cortasse a fita inaugural. Com muita festa, a latrina foi inaugurada. A avó, muito devota, colocou uma plaquinha na porta, com os seguintes dizeres: "Ao entrar, Deus te acompanhe; ao sair, Deus te abençoe".

Ficou decidido que a primeira pessoa a usar a nova construção seria a velha. Foi aí que começaram os problemas, pois a pobre senhora sofria de constipação e, a despeito das buchadas, sucos de ameixa e quilos de alface, a avó demorou 7 dias para ir ao banheiro. No sétimo dia, de madrugada, a velha sentiu vontade de urinar. Ficou tão feliz, que foi ao banheiro com um terço na mão, rezando uma novena em agradecimento. Ao entrar e se acocarar, ficou tão contente pelo fato de não sentir respingar urina em suas canelas, que teve um ataque cardíaco fulminante e caiu no poço da latrina. Demoraram 43 dias para encontrarem o cadáver da velha, coberto de fezes, dentro do buraco. Uma feliz coincidência, pois a nora viu, depois de defecar, a dentadura da pobre senhora. De início, ficou horrorizada, pois achou que a merda lhe sorria. Só depois de apurar o olhar, viu o corpo da sogra, já em avançado estado de decomposição. Fizeram o velório de caixão fechado, pois, àquela altura, não souberam diferenciar o que era bosta e o que era a velha e, por via das dúvidas, enterraram tudo junto. Um engraçadinho disse que não era um enterro, mas uma descarga. Em respeito à família, o delegado deu voz de prisão ao pilheriador.

A latrina ficou amaldiçoada, desde então. Toda pessoa que ia aliviar a bexiga ou o intestino, ficava presa por, no mínimo, quatro horas. Tanto, que sempre ia fazer as necessidades com uma marmita, para almoço ou jantar, dependendo da hora. A danada da porta parecia abrir-se quando queria. Começaram a dizer que o espírito da velha assombrava o banheiro. Chamaram um padre, que ficou de consultar o Vaticano acerca de tal fato. Semanas depois, o cura chegou dizendo que não poderia exorcizar a latrina, pois a Santa Sé, em seu código canônico, mencionava quartos, salas, cozinhas, quintais e até penicos, mas não fazia menção a latrinas. Recomendou uma rezadeira ou um macumbeiro, que eram quem entendiam daquelas crendices populares. Optaram pela primeira.

Dona Josefa, amiga de infância da falecida senhora, chegou com um galhinho de arruda e um saco de sal grosso. Depois de muita cantoria e conjurações, a idosa solenemente, com a voz da sabedoria que somente incontáveis décadas podem trazer, disse: "Traz o menino mais novo". Sebastiãozinho, o caçula, foi escolhido como cobaia, porque estava há 5 dias sem evacuar. Trancada dentro da latrina, a pobre criança, morta de medo, naturalmente borrou-se toda. Misteriosamente, naquela ocasião, a porta não se trancou sozinha, e encontraram o menino, minutos depois de entrar, banhado na própria merda, lívido de medo. A latrina, de amaldiçoada, passou a ser lugar de peregrinação. Diziam que era milagrosa e curava todos o males: espinhela caída, bico de papagaio, anemia, bicheira, unha encravada e, é claro, prisão de ventre. As pessoas começaram a vir de todas as regiões, para pedir milagres e deixar ex-votos na latrina. Tinha de tudo: orelhas, pernas, barrigas, olhos, miniaturas de casas, de burros e até um pênis, feito de mandioca, depositado por um velho que se curou de impotência e foi pai aos 97 anos. A família, obviamente, aproveitou-se do fato e começou a fazer fortuna. Compraram um penico muito bonito, de porcelana, branco, com uns desenhos de vaquinhas e cabritinhos, e já não usam mais a latrina.

Hoje, se você perguntar aos mais velhos, há, na Paraíba, o lajedo de pai Mateus, a cruz da Menina e a latrina da Velha. Lugar de maravilhas, onde a religiosidade popular encontra sua forma máxima. A velha, agora, espera na fila da beatificação. Dizem que o papa considera seriamente o pedido de passá-la direto à categoria de santa.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Pai e filho

Conto dedicado a Paulo Ewerton, que aderiu à campanha 2 contos por 1 conto.


- Que você quer ser quando crescer?

- Pai! - respondeu, sem pestanejar, Camilinho, aos sete anos.

Para a criança, a paternidade era a melhor coisa do mundo. Amava o pai com todas as forças que seu jovem coração poderia suportar. Amava e era amado. Por isso, acreditava tão cedo, que ser pai era uma vocação, "coisa linda de Deus", como ouvia a avó dizer. O pai, "Seu" José, não era rico e tampouco bonito. Gordo, careca, sempre suado, dentes amarelados pelo cigarro e corpo excessivamente peludo. O amor pelo filho, entretanto, era diretamente proporcional a sua feiúra. Amava tanto aquela criança, que se tornou ateu, pois não entendia como Deus havia dado "seu único filho", para morrer pela humanidade. José sacrificaria o último ser humano, por amor de sua cria. Camilinho sentia esse amor, pois o pai o exalava, como exalava aquele suor que lhe era característico. Crescendo com tão bom exemplo, como poderia não desejar a paternidade?

A despeito da pobreza, pai e filho se sacrificavam um pelo outro. Este não pedindo nada que, comumente, as crianças pedem; aquele matando-se de trabalhar, para dar ao filho aquilo que ele não pedia. A família não jantava, fazia festas. Mesmo com muito trabalho, "Seu" José fazia questão de sentar à mesa com o filho. Era um momento de profunda intimidade, de conversas afetuosas e conselhos. O pai ouvia, com atenção, cada palavra dita pelo seu pequeno, como se a saboreasse junto com o jantar preparado pela esposa.

Por causa desses tempos felizes, Camilinho, agora Camilo, casara-se cedo, aos 19 anos. Manifestou imediatamente à esposa a vontade de ter filhos tão cedo quanto possível. De fato, 3 meses após o casamento, sua mulher engravidou. Camilo recebeu a notícia na hora do almoço, passou mal, ficou tonto e desmaiou. A esposa quase aborta, de tanta preocupação. Passado o susto, Camilo era todo sorrisos. Cantarolava o dia todo, distribuía muitos "bons dias" na rua, cumprimentava desconhecidos e até comprou um adesivo para seu carro: "Bebê a bordo". Quando perguntado se queria menino ou menina, Camilo respondeu que poderia ser qualquer um, que seria bem-vindo. Queria dar amor, queria repetir a infância feliz, queria admirar e ser admirado. Por essa época, "Seu" José já era falecido. Isso, para Camilo, representou uma responsabilidade a mais: deveria perpetuar o pai através de seu filho.

Nove meses depois, a esposa sentiu as dores do parto. Desembestado, Camilo acudiu para a maternidade, sentido, ele também, as contrações da esposa. Seria pai! Camilo não fumava, mas, enquanto esperava o parto, virou uma fogueira de São João, tanta fumaça soltava, pois dera-lhe na telha comprar cigarros. Achou que era um dever paterno encher os pulmões de monóxido de carbono na chegada do primogênito. Parto difícil. Camilo se desesperava, na sala de espera. Viu uma mulher de branco se aproximar e a abordou nervosamente: "E então, enfermeira? Nasceu? Nasceu?". "Não sou enfermeira, moço, sou espírita". Acabaram-se os cigarros, e Camilo começou a roer as unhas. Na nona unha, o médico chegou: "Senhor Camilo? O Senhor teve um menino". Camilo era só lágrimas. Chorou como um bebê. Deve ter chorado, inclusive, mais que seu filho recém-nascido. Sem fôlego, sem forças e sem unhas, Camilo foi encaminhado para o berçário. Ao chegar, através do vidro, uma auxiliar de enfermagem apontou o pequeno bercinho.

Camilo arregalou os olhos. Ficou lívido. As pernas fraquejaram. Teve que se apoiar, para não desabar no chão. Não podia acreditar no que via. Não. Aquele não era seu filho. A criança tinha lábios leporinos! Aquele arremedo de lebre não poderia jamais ser seu filho tão esperado. Jamais! Camilo teve raiva, muita raiva! Esperara anos, e tinha, agora, um ogrinho. Foi pior na hora em que a esposa tentou amamentar a criança. Camilo obersavava, com repulsa e horror, o leite materno escorrer pela fenda labial. Quando a criança se engasgou, Camilo explodiu de raiva, chamou a esposa de maconheira, culpou-a pela má-formação do bebê, acusou-a de ter transado com um coelho, fez um inferno. Deixou o hospital e foi beber.

De madrugada, Camilo voltou ao hospital. Entrou no quarto da esposa e percebeu que o bebezinho dormia ao lado do leito da mulher. Ambos dormiam, na verdade. O jovem esticou o pescoço e observou a criança. Teve nojo. Bêbado de álcool, tristeza e frustração, Camilo aproximou-se do bercinho. De perto, o filho parecia-lhe pior ainda. Silenciosamente, tocou o rosto do filho e sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. Em seu coração, tocara o rosto do diabo. Silenciosamente, Camilo pôs a mão espalmada no rosto do bebê e sufocou o próprio filho. Pronto. Estava morto. Agora, poderia sonhar em ser pai novamente.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

A mãe

Conto dedicado a Ramon Limeira, oficial de chancelaria do Itamaraty, o qual aderiu à campanha 2 contos por 1 conto.



Suzana depositou as flores no túmulo da mãe morta. Há exatos sete anos, sempre nessa data, repetia mecanicamente o ato. Era um hábito anual singelo: no aniversário da morte da Velha, comprava rosas, punha-as sobre o túmulo e ia embora. Simples assim. Naquele dia, entretanto, ela parou, para olhar os jambeiros, que estavam apinhados de frutas. Lembrou-se imediatamente de ter ouvido, na infância, que "o melhor jambo é o dos cemitérios". Achou engraçado aquilo, porque parecia ser verdade. Pensou que gosto teria a última das misérias humana e teve vontade de experimentar uma daquelas frutas. Será que sentiria o gosto da mãe? Se sim, deveria, então, ser amargo e, muito provavelmente, venenoso. Não gostava da Velha. Assim, quebrando sete anos de um ritual meticulosamente repetido, Suzana sentou-se em frente à cova de sua genitora, pela primeira vez.

Aos 39 anos, estava divorciada e não tinha filhos. Perdera o pai muito cedo. Matara-se. Ouvia a Velha dizer que a única herança que o infeliz lhe deixara fora uma filha imprestável e um carro. O mesmo carro que, muitos anos depois, justiçara Suzana. A mulher não entendia o porquê do desprezo da mãe. Deveria ser amada, pois era filha única e, em tudo, lembrava as feições da Velha. Quem não ama o próprio retrato? A mãe era vaidosa. Amava-se por demais. Como não poderia amar aquele pequeno arremedo de si? Suzana se esforçava, desde cedo, para agradar imensamente sua mãe, para receber não amor, mas o mínimo de desprezo possível. Foi a melhor aluna da sala durante toda sua vida escolar, mas a Velha, essa maldita, nunca comparecia às festinhas da escola. De fato, nenhum de seus colegas vira sua mãe. Chamavam-na, por conta disso, de "filha de chocadeira".

Sem o amor materno, Suzana buscava conforto nos livros. Passou a odiar Victor Hugo depois que leu "Os Miseráveis". Não entendia por que Fantine vendera os dentes, para tratar da falsa doença de Cosette, uma vez que sua mãe raramente dava-lhe um sorriso. Tinha raiva dos dentes da Velha. Tanta raiva, que, no velório, às escondidas, retirou a dentadura da morta, a fim de que a desgraçada não ousasse sequer sorrir na sepultura. Em certa ocasião, ganhou, de um namorado, o livro "A mãe", de Gorki. Jogou o folhoso, no lixo, assim que chegou em casa. Agora, odiava a mãe, o autor soviético e o desavisado namorado. Apaixonou-se por Poe, quando leu "O coração denunciador". Chegou a sonhar, por dias, que, no lugar do senhorio assassinado, estava a mãe. Porém, Suzana não tinha instintos assassinos. A despeito do ódio pela Velha, era uma pessoa boa.

Um dia, enquanto estavam jantando, a mãe perguntou quando se casaria, porque "uma mulher solteira, nessa idade, é um fardo para a família". A Velha lhe deu uma idéia. Dezoito meses depois, Suzana estava casada. Dezoito meses depois, Suzana estava divorciada. Descobrira que não poderia ter filhos. No lugar de infelicidade, a mulher recebera a notícia com alegria, pois sentiu que, com isso, quebrava-se uma maldição. Estava finda a possibilidade de ser uma mãe como a Velha. O marido, obviamente, não entendeu e foi procurar um ventre que pudesse fertilizar com sucesso. "Que tenha filhos como um coelho", pensou Suzana. Não se importava. O casamento serviu para tirar-lhe da casa materna. Foi, antes de tudo, uma salvação, uma alforria.

Há exatos sete anos, quando estava no trabalho, Suzana recebeu a notícia da morte da mãe. A Velha saíra no carro deixado pelo pai, e um caminhão, parece, esmagou o veículo contra uma árvore. Ironicamente, um jambeiro. A morte da mãe trouxe um imenso alívio e sete dias de licença do serviço. Foi um dos poucos benefícios que recebera da Velha. Sete dias de descanso. No velório, não derramou uma lágrima e teve que controlar a vontade de cantar. Lembrou-se de Chico Buarque e, mentalmente, cantarolava "Vai passar". Estava livre.

Suzana olhou para o túmulo ao lado. Uma cova simples, com uma cruz azul, de madeira, a inscrição parcialmente desgastada pelo tempo e pelo abandono. "Não sei o quê da Silva", leu Suzana, pois não dava para saber o primeiro nome. Lembrou-se da vaidade da mãe, dos anos de desprezo, da falta de afeto, das palavras amargas, dos abraços ausentes e do amor que nunca recebeu. Levantou-se, retirou as rosas do túmulo da Velha e depositou-as no do "Silva" cerimoniosamente. Suzana nunca mais voltou ao cemitério.

Sobre mim


Comecei o blog despejando textos e esqueci de me apresentar formalmente. Eis-me, então, em linhas gerais:


Moisés Costa Neto, parahybano com sotaque forte, historiador por formação, sociólogo por pós-graduação, ex-evangélico, não sou marido de ninguém, não tenho filhos, mas plantei uma flor no quintal de casa, e, agora, ela floresce loucamente. Vocês precisam vê-la. Filho de pais divorciados, neto de avós falecidos. Todos eles. Nascido em 20 de junho e, como todo bom geminiano, não acredito em horóscopo. Às vezes, gosto mais de Gramática que de História, apesar de me enrolar um tanto na sintaxe, esquecendo as subordinativas, confundindo as coordenativas e usando, com boa constância, as aliterações.

Por increça que parível, tenho preguiça de escrever. Desisto mil vezes de um mesmo texto e escrevo vários ao mesmo tempo. Adoro ler, ler é minha vida. A leitura foi minha irmã mais velha, minha babá e, algumas vezes, minha mãe. Gosto dos oitocentistas: Machado de Assis, Bernardo Guimarães, Aluísio Azevedo, Tolstói, Victor Hugo, Alan Poe. Tenho várias traduções de "Robinson Crusoé", livro que me acompanhou boa parte de minha infância e adolescência, releio-o, pelo menos, uma vez por ano.

Amo meus amigos. Dois em especial, que me inspiram e me põem para cima. Uma está em Campina Grande; outro, em Brasília. Apesar do meu jeito ausente, penso constantemente neles e agradeço à sorte por tê-los sempre comigo, "longe dos olhos, mas perto do coração". Para não ser injusto, lembrarei aqui, de nome, dos mais diletos: Edson, Bia, Mayrinne, Renata, Liliane, Andréia, Uendry, Yoko, George, Igor e Danilo. Vejo-os pouco, mas, naqueles breves momentos, sinto profundo afeto por todos. São parte de mim, parte do que sou e do que quero ser.

Gosto de tatuagens. Tenho quatro e já encomendei a quinta. Se pudesse, faria várias, mas creio que ficaria esteticamente feio. Paro nessa quinta mesmo. Tenho PAVOR de duas coisas: dentistas e ratos. Enfrento o primeiro a cada seis meses, como manda o Ministério da Saúde, e corro do segundo, sem pudor. Gosto de gatos, porque eles não gostam de ratos. Fui adotado por uma poodle de 25 centímetros, a qual me recebe no portão, sempre que chego em casa.

Sou eclético no gosto musical. Ouço de tudo, mas, especialmente, Regina Spektor, Alanis Morissette e Oren Lavie. Gosto do Chico, o Buarque, porque é bom letrista e politicamente de esquerda. Desconheço essas cantoras novas que apareceram por aí: Maria Gadu, Maria do Céu, Maria da Penha, Maria da Silva, entre outras Marias. Vez ou outra, escuto uma música evangélica, pela saudade de meus amigos cristãos. Tenho amigos que são amigos de Cristo. É saudável ter bons contatos.

Sou, como diz um conhecido, um esquerdóide. Votei no Lula duas vezes, votaria a terceira, e, se fôssemos monarquistas, queria que ele fosse nosso rei. Simpatizo com o Partido da Causa Operária, porque respondem com radicalismo ao radicalismo do capital. Sonho com uma sociedade igualitária, com saúde, educação, lazer e trabalho, públicos e de qualidade, para todos. Ouso dizer que sou socialista, meio capenga, meio desiludido, mas ciente do que o capitalismo é capaz. Já fui bem pobre. Andava a pé, porque tinha que escolher entre ir de ônibus para o trabalho ou para a universidade. Hoje, ganho mais que minha mãe.

Professor, nutro, sem demagogia ou hipocrisia, afeto por TODOS os meus alunos, incluindo aqueles que não me dão sossego. Grito, dou carão, expulso de sala, faço sermões montanhescos, pego no pé, mas elogio, trato com cuidado, respeito e rio com eles. Eles me acham rigoroso, grosso, intolerante, mas, no fundo, eles me amam.

Sou um homem apaixonado. Atual e infelizmente não-correspondido. A vida me deu e ela mesma tomou. Sou um Jó no amor, eu diria. Nesse sentido, não sei como será meu futuro. Certamente, encontrarei alguém, caso contrário sempre estarei disposto a segurar vela para os casais de amigos. Sou ciumento e inseguro, pois a infância me deixou uns certos traumas. Sou romântico, de verdade. Mando SMS, escrevo bilhetes, dou flores, levo para jantar, seguro a mão no cinema, sonho com a pessoa, penso na cor das cortinas e programo viagens imaginárias para lugares distantes. Sempre a dois.

Pronto. Minha descrição coube em uns poucos parágrafos, mas, como disse um sábio internacionalmente desconhecido cujo nome não me vem à memória, "definir é limitar". Limitado, cá estou eu, em palavras, para vocês, parcos e diletos leitores.


Grande abraço.



P.S.: Defeitos ficam em um post scriptum. Tenho muitos, e isso basta.

sábado, 3 de julho de 2010

Cigarro

Postagem dedicada a Antonino Stropp, advogado, o qual aderiu à campanha 2 contos por 1 conto. Eis, Antonino, seu pagamento. Obrigado.


Geralda fumava desde os 3 meses de gestação. Sua mãe, quando descobriu que estava grávida, decidiu abandonar alguns vícios: largou o café, a bebida e o marido, mas conservou o cigarro. Na hora do parto, quase esperou que o obstetra dissesse "É um lindo maço de Malboro", mas era uma menina mesmo. Chamou-a Geralda. Desde tenra idade, a família de Geralda era constituída pela mãe, por um tio velho, um papagaio e o monóxido de carbono, além, é claro de uma constante rinite de causas desconhecidas. Na sua casa, poderia faltar pão, mas abundava o cigarro e a bendida rinite.

Quando criança, perambulava, com algumas coleguinhas, pelos botecos, esperando que os bêbados arremessassem as bitucas quase totalmente consumidas, na rua. Ela, então, corria, apanhava a piola e saía sorrindo, com a boca cheia de nicotina e saliva alheia. Por essa idade, fumava escondida, pois a mãe sempre lhe dissera que o cigarro fazia mal. Devia ser alguma mentira, pois, bastava ficar sem fumar, que a matriarca da família ficava com um humor do cão. Entendeu, a partir daí, que, mais que o dinheiro, o cigarro era quem trazia felicidade. Na escola, o vício de Geralda virou referência:

- Sabe a Geralda?
- Que Geralda?
- Uma loira.
- Uma loira?
- É. Uma loira de olhos azuis, cabelos batendo na cintura.
- Geralda... Geralda... Geralda... Lembro não.
- Geralda, uma que fuma pra caramba.
- Aaaah! A Geralda... Que tem ela?
- Foi pega roubando.
- Roubando? O quê? Cigarros?
- Não. Isqueiros.

Quando entrou na adolescência, Geralda queria ser a Audrey Hepburn. Boa atriz, carismática, bonita e FUMANTE. Quando assistia a seus filmes, procurava, nos créditos finais, a marca do cigarro fumado pela atuante principal. Coitada da Geralda. Tinha os créditos de cor, mas desconhecia quase completamente a trama da película. De Natal, ganhou uma piteira de marfim de sua mãe, que estava debilitada por conta de um atropelamento. Morreu em breve, a idosa, porque, na ala do hospital em que a velha ficou internada, não havia área para fumantes. Por conta disso, resolveu padecer em casa, na companhia da família e de um cinzeiro sempre abarrotado de bitucas.

Em seus devaneios, quando não tinha nada para fazer, exceto fumar, enviou, para o Congresso Nacional, uma proposta de criação do Bolsa-Nicotina, a fim de que os fumantes pudessem manter certo estoque para momentos de recessão financeira. Nessa época, a indústria do tabaco tornou-se sua melhor amiga, mas, nem por isso, forneceu-lhe cigarros grátis. Diziam que Geralda era mágica: bastava sacarem um cigarro do bolso, para que ela, inesperadamente, brotasse da terra, com olhar pidão, mão estendida e seu mantra conhecido: "Dá um trago?". Foi por esse tempo que começaram a chamá-la de Fumalda.

Com muito custo, alcatrão, nicotina e monóxido de carbono a 9mg, conseguiu se formar em medicina. Às vezes, assistia às aulas em pé, no corredor, porque era proibido fumar dentro da sala. Na colação de grau, sem querer, incendiou a bata da colega que estava sentada na cadeira ao lado. Foi um corre-corre desgraçado, mas, graças a Deus, Geralda conseguiu salvar a carteira de cigarros, que ainda tinha 17 unidades. Resolveu se especializar em neurologia, e esse foi o maior erro de sua vida. Ficava privada do vício durante cirurgias que poderiam demorar mais de dez horas. Certa feita, não agüentando a situação, antes de um procedimeto, foi conferir os objetos com a instrumentadora cirúrgica:

- Bisturi?
- Ok.
- Tesoura?
- Ok.
- Pinças?
- Ok.
- Afastadores?
- Ok.
- Cinzeiro?
- Hein?!

Sacou um do bolso e começou a incisão na cabeça do pobre infeliz anestesiado. Um corte, um trago, uma punção, outra tragada. Lá pela oitava hora de procedimento, operava o cinzeiro e jogava as cinzas no cérebro exposto do paciente. Obviamente foi demitida. Buscou consolo no sexo, porque, depois do gozo, nada melhor que acender um cigarro. Com esse costume, perdia todos os pretendentes e namorados. Sem emprego, sem amigos, sem namorados, mas sempre com o maldito fumo, decidiu parar. Foi à farmácia, comprou a mais cara pílula que prometia pôr fim ao seu vício. Chegou em casa e teve dificuldades de entender as instruções da bula. Optou pelo método mais fácil: pegou uma cartela, retirou um comprimido, acendeu-o e fumou-o. Foi a melhor tragada que dera na vida.