sábado, 26 de junho de 2010

Morte

Sentou-se na cadeira, acendeu um cigarro e segurou a xícara de café morno e com muito açúcar, como gostava. Posicionou-se de frente para o relógio da parede. Um relógio vagabundo, comprado naquelas lojas de 1,99, porque não gostava de relógio de pulso. Sabia que iria morrer naquele dia, exatamente às 21h47. Não sofria de nenhuma doença grave previamente diagnosticada, não seria assassinado e tampouco se mataria. Cairia morto. Simples assim. Tinha essa impressão desde tenra idade, quando percebeu que a vida, neste mundo, não lhe pertencia. Sentia-se um estranho, um deslocado, parecia que passava breves férias cá no mundo dos vivos. Não sofria de depressão, antes, o contrário, tinha um apurado senso de humor, e sarcasmo e ironia eram os pontos altos de suas falas.
Acostumou-se com a idéia da morte e até a comunicava para os mais próximos. Certa feita, em uma consulta a um psicólogo, foi perguntado como se via daqui a 10 anos. "Morto", respondeu serenamente. Com o passar do tempo, os sinais da morte anunciada se intensificavam. O mundo começou a lhe dar fadiga. Cansava-se das pessoas, dos livros, dos filmes, da vida, enfim. Por vezes, acordava muito cedo e passava horas sentado na cadeira. Esta mesma cadeira que, agora, seria seu leito de morte. Há uns meses, começou a sentir dores estranhas na região do umbigo. Foi ao médico, gastou milhares de reais em um check-up completo e nada foi diagnosticado. "Você tem dores imaginárias", disse o médico. "Dores do além", pensou em resposta. Interpretou que a Ceifeira já mandava seus recados, como se dissesse que o momento final se aproximava. Percebeu que aquelas dores estranhas eram, na verdade, um segundo cordão umbilical, que não ligava a qualquer placenta, mas à vida.
Espiou o relógio mais uma vez: 21h43. Procurou uma posição mais confortável, cuidou para que, na hora de sua partida, o cigarro não incendiasse o pequeno apartamento. Não fazia questão de derrubar a xícara com café, achava dramático, como nos filmes. Olhou para a mesa de canto, a fim de averiguar se as instruções de seu velório estavam ali. Os livros seriam doados aos amigos mais próximos assim como os filmes, muitos dos quais pirateados de um simpático camelô. Às 21h45, o umbigo começou a doer. Doía como nunca antes. Chegou mesmo a conferir se algum alien não lhe saltaria da barriga, tamanha era a dor que o atormentava. Teve o cuidado para só derrubar o café na hora em que sua alma fosse levada pela gadanha da Ceifeira Sinistra. Desligou o celular, para não ser incomodado na hora da partida. Às 21h46, a dor o fez soltar a xícara. "Droga!", pensou. "Foi-se embora meu momento Cidadão Kane...". O relógio bateu 21h47, e as lamentações acabaram.
21h48. Apagou a bituca do cigarro no cinzeiro, juntou os cacos da xícara e foi dormir. Teria trabalho pela manhã cedo.

5 comentários:

Rennan Ono disse...

sabia q ele não ia morrer (:

Anônimo disse...

Tempos Interessantes de volta! =)

Danuza

Uendry disse...

Engraçado como nossas certezas nos enganam constantemente. Seria tão mais fácil se não as tivessemos, não as esperassemos. Mas, qual graça teria se toda certeza fosse, reduntantemente, certas? A incerteza, mesmo certa, é que é a responsável pelo nosso caminhar.

O pobre rapaz, com certeza, desejava morrer, e estava, como disse o texto, conformado com tal destino. Não sei se acho isso triste, sinceramente, pois, no final das contas, a morte é o final de tudo, é o derradeiro momento, nada melhor que tentar abraçá-la com calma.

E, uma vez mais, foi-se dormir, provavelmente meio morto, para que, no dia seguinte, mais um pouco de sua vida fosse ceifado.

Aos poucos...
Lentamente...

Morremos.

RLCA disse...

A dor na barriga era obstipação.

Raskólnikov disse...

Só pra deixar escrito em algum lugar que acho esse texto genial. xD