domingo, 27 de junho de 2010

Casamento

Dona Eusébia acordou com o barulho do despertador, às 5 da manhã. Ao lado, o marido roncava desesperadamente. Eram casados há 27 anos. Diariamente, Eusébia despertava, há exatos 27 anos e 36 dias, às 5 da matina, para preparar o café do esposo. Ele engordara muito nos últimos anos. O pior é que a infelicidade da dona de casa aumentava proporcionalmente à camada de tecido adiposo de seu cônjuge. Com o tempo, ele ficou desleixado. Com o tempo, não. Talvez sempre tenha sido assim. Deve ter trazido o costume para o relacionamento. Ficou relapso com a aparência e, principalmente, com o casamento. Parecia que, no fundo, procurava uma empregada doméstica, não uma esposa. Dona Eusébia sentia-se uma mucama, para quem o marido, senhor cruel, servia apenas para servir a mesa todos os dias e a vagina duas vezes por semana, no máximo. Com 47 anos, nunca tivera um orgasmo. Certa feita, ao ler uma dessas revistas femininas, descobriu a masturbação, mas foi descoberta pelo marido, em pleno ato lascivo. Levou uns tapas e a alcunha de vagabunda.
Às vezes, pensava ser uma escrava, mas, ao contrário desta, não podia comprar sua alforria, posto que estava gravado, em seu DNA, como uma má-formação congênita, os laços do sagrado matrimônio. Para ela, ser mulher significava estar casada. Então, para dona Eusébia, ser mulher era, de fato, sofrer. De uns tempos para cá, o marido dera para ter amantes. Pior: tinha que entregar os recados das vadias que ligavam para ele. O padre a aconselhou a agüentar a situação, pois "o que Deus uniu, o homem não pode separar". Tudo bem, enfim. Ser mulher também passou a ser uma imposição, um castigo divino. Não tiveram filhos, e o marido jogava, constantemente, em seu rosto, que seu ventre era uma terra seca, onde não poderia brotar sequer a mais desprezível erva daninha. Certamente, era culpa dela mesmo. Todas as amigas eram mães, exceto ela. Por muitos anos, esperou que Deus, como fez a Sara, esposa de Abraão, abrisse-lhe a madre, mas de tanto esperar, acreditou que o Senhor havia perdido a chave.
Era costume pular da cama e ir direto para a cozinha, toda descabelada e remelenta, fazer os serviços domésticos antes do despertar do marido. Não queria que ele ficasse violento e ranzinza logo pela manhã. Mas, neste dia, dona Eusébia fez diferente. Levantou-se e postou-se em frente ao espelho. Alinhou os cabelos já um tanto grisalhos, não por causa da idade, mas por conta do sofrimento. Retirou, da gaveta da penteadeira, um pequeno tesouro: um batom que ganhara em um amigo secreto de Natal. Seu único presente em anos. Passou suavemente nos lábio finos, prendeu os cabelos em um infantil rabo de cavalo, calçou a velha sandália e foi para a varanda. Deu um última olhada para o paquiderme com que se casara. "Morra gordo, filho de uma puta", pensou e riu. Saltou. Dona Eusébia, escrava doméstica e, por vezes, sexual, nunca fora livre em 27 anos e 36 dias, mas seria livre, agora, nos 43 metros que a separavam do chão.