domingo, 21 de agosto de 2011

O funk e a libertação feminina


Catem esta letra de um funk carioca:

Comece a me chupar
Metendo pra lá e pra cá

Comece a me chupar [2x]
Depois come o meu cuzinho
Só pra me fazer gozar
Comece a me chupar [2x]
Depois come o meu cuzinho
Só pra me fazer gozar

E vai chupando, e vai chupando,
e vai chupando, vai chupando, vai chupando, chupando, chupa gostoso!
E vai chupando, e vai chupando,
e vai chupando, vai chupando, vai chupando, chupando, chup.. que isso!

Agora para! E vai metendo..
E vai metendo, vai metendo, vai metendo e vai metendo, mete gostoso!
Agora para! E vai metendo..
E vai metendo, vai metendo, vai metendo e vai metendo, vai metendo!

Eu ja to louca, não to mais aguentado
Esse cara é pirocudo, ele tá é me rasgando
Eu ja to louca, não to mais aguentado
Esse cara é pirocudo, ele tá é me rasgando

Não discutiremos aqui o valor estético da obra. Não cabe, nesta discussão, valores artístico a respeito de arranjos, melodia, estrutura das rimas, entre outros. Vamos nos ater ao seu conteúdo sociológico, aos ditos e não-ditos.

A primeira coisa que nos chama a atenção é o fato de que a letra, pululando de palavrões e referências ao ato sexual, ressaltando a animalidade com que ele é praticado, é cantado por uma mulher. Podemos dizer que, historicamente, o caminho percorrido pelo funk, para chegar ao balaio de palavrões que é hoje, é relativamente curto. No começo da década de 1990, presenciamos esse estilo musical com uma função majoritariamente de cunho político. O funk era transgressor na medida em que contestava o sistema político-econômico imposto pelo capital. Era, de fato, uma espécie de grito dos excluídos, música feita por pobres para pobres. Em princípios do século XXI, o Bonde do Tigrão inaugura, nacionalmente, um tipo de música mais despolitizada a qual caiu, quase que instantaneamente, na lógica capitalista de mercadorização. Nessa nova expressão do funk, a cultura política dá lugar à cultura do sexo. Temos, assim, um grupo de homens e mulheres que expressam, a despeito de suas condições econômicas de origem, toda uma carga sexual que, outrora, era mascarada pelas letras e poesias engendradas pelo amor do tipo romântico. O tempo, entretanto, ainda não era das mulheres, apesar de, algumas delas, arriscarem uma ou outra canção.

Nessa qualidade de música, a mulher aparece como objeto do desejo sexual do homem. A lógica machista expressa sua dominação por meio da submissão sexual da mulher. Até aqui, nenhuma novidade. A diferença é que, agora, o funk passa a anunciar, para o público, práticas que ousavam se revelar apenas no âmbito da alcova, do privado. Entretanto, por mais que o funk, na primeira metade da década de 2000, reproduza tal lógica da dominação masculina, a revolução já desponta. Na música "um tapinha não dói", que gerou protestos feministas por todo o Brasil, um bando de marmanjos ordenam que uma mulher faça poses sensuais para eles. A surpresa acontece no refrão: uma voz feminina diz, em bom som, que "um tapinha não dói". Embora dominada por homens, naquele momento, a mulher anuncia sua sexualidade! Ainda que seja para dizer que gosta de um tipo de prática sexual que muitos julgam humilhante, o feminino finalmente se expressa. A funkeira Tati Quebra-Barraco, então, nessa mesma época, completa a dialética sexual do funk. Uma das primeiras mulheres a anunciar a posse de sua sexualidade, Tati Quebra-Barraco virou revolucionária.

O mais impressionante, e que, obviamente, chama-nos mais a atenção, é que essa libertação sexual feminina veio justamente das camadas mais carentes da população. Constantemente acusados de retrógrados e conservadores, os pobres dão um soco no estômago da pretensa revolucionária classe média e da inteligentsia. Ao reproduzir a lógica da dominação masculina, o funk carioca abriu as portas para um outro tipo de revolução: a sexual. Ironicamente, como previu Marx, mas agora com sexo no lugar da exploração capitalista, o povão comandou a revolução. Era de se esperar que, inevitavelmente, a mulher passaria de agente passivo para ativo na declaração de sua sexualidade, posto que, quem tem voz, fala.

No início da década de 2010, os discursos femininos, no funk, estão saturados de referência ao sexo. É como se fosse uma manifestação histérica de uma sexualidade que foi reprimida durante séculos e que, agora, explode a plenos pulmões (e por que não dizer a plenas vaginas?). Valesca Popozuda, expoente desse tipo de funk sexualmente obsessivo, longe de merecer os títulos de promíscua, vagabunda ou prostituta, é, na minha opinião, a salvadora das mulheres. A genialidade de Valesca reside justamente na quebra da imagem paradigmática da mulher tradicional. Valesca Popozuda desponta, finalmente, para o bem do feminino, como a anti-Nossa Senhora. Que me perdoem os católicos, mas Maria é a imagem mais perversa e opressora do feminino. É a mulher que, milagrosamente, sem exercer sua sexualidade, torna-se mãe. É a mulher que, sem a necessidade do sexo, que nunca a pertenceu, transfigura-se na imagem ideal da mulher: submissa, sempre intercessora, porém nunca no comando, resignada, melacolicamente gentil, prendada e, principalmente, afastada do sexo. Valesca Popozuda, embora não literalmente, como fez certo pastor da Igreja Universal, chuta a santa. A mulher, agora, é dona da própria vagina, comanda o próprio gozo, escolhe seu parceiro, exerce livremente sua sexualidade, domina o macho, ridiculariza-o, zomba de sua sexualidade. A mulher, finalmente, liberta-se do jugo masculino do exercício de sua sexualidade mais plena.

A despeito de nossa natureza machista, que sempre procuro domar em mim, as garotas funkeiras tomam a linha de frente, muitas vezes de maneira mais eficaz que certas feministas, no espaço público que é devido à mulher. Embora muitos argumentem que o combate principal trava-se no campo da política, os tempos hodiernos mostraram que o campo fértil das revoluções brota da e na cultura. Oprimidas pelo sexo, libertas pelo sexo. Vida longa à Valeska Popozuda e a sua vagina, pois ambas ousaram, sem vergonha (isso mesmo, sem o hífen), desafiar os falos dominantes.
Despeço-me com um vídeo que traduz, de maneira mais fiel e menos intrincada, o que quis dizer com esse texto. Aproveitem:

7 comentários:

Roger disse...

Arrasô Dani P.!

Uendry disse...

Não tenho muito conhecimento a respeito de funk, mesmo me agradando demais pelo ritmo. Afinal, tenho alma carioca e não teria como não gostar desse estilo de música sendo apaixonado pela cidade.

Porém, como você bem analisou no seu texto, o funk, de todas as formas, é agente trangressor e, da mesma forma, age de forma a quebrar paradigmas e revolucionar. Funk social, sexual e feminista, nesta ordem, veio de encontro com o estilo musical vigente em sua época.

Sendo assim, podemos afirmar, sim, que a classe menos intelectualizada tem, ao contrário do que se imaginaria, maior facilidade em aceitar o novo... A real revolução viria das bases para o topo, já que, no Rio, grandes bailes funk, regados de bebida, é amplamente frequentada pela elite das zonas oeste e sul da cidade, no chamado "castelo das pedras".

Isso seria, então, um fato isolado ou tendência?

Saulo Oliveira disse...

Que o funk (feminino) seja levado ao Oriente.

Pierre Lira disse...

Que seja conservadorismo, mas não consigo enxergar libertação alguma nesse tipo de fenômeno, tanto masculino quanto feminino.

O que vejo é apenas sexo por sexo, sem consciência de nada que vá além disso. De qualquer modo, o texto foi muito bem escrito. =)

FOXX disse...

texto absolutamente perfeito, q merece ser indicado sempre.

Anônimo disse...

A letra do FUNK em discussão não passa de baixaria e apelação! lamentável que haja espaço para isto na música brasileira!

Phillipe disse...

Ótima análise. O texto está excelente! Vou favoritar aqui para indicar ao pessoal que só sabe criticar essa forma de liberação feminina sem ao menos procurar enxergar os impactos positivos (por que não?) disso na sociedade.