segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Do Jardim e Outros Demônios


José se encantou por Maria desde o primeiro momento em que pousou a vista naquele belo rosto. Diz que a viu, mas não a enxergou muito bem, porque José tinha sérios problemas de visão. Foi, então, amor à primeira cegueira. Vieram, assim, as borboletas. Aqueles insetos conhecidos de todos os apaixonados e que teimam em fazer casulos em seus estômagos. José não podia tossir, que lhe saía voando uma borboleta pela boca. Era muito comum que as pessoas, ao conversarem com José, saíssem catando asas dos cabelos e tirando aquele pozinho do rosto.

Um dia, José e Maria se beijaram. Trocaram borboletas, na verdade, uma vez que Maria também amava José. Foi um dia deveras inesquecível, pois a amada dissera-lhe que ele tinha orelhas de velho. Eram umas orelhas um tanto grandes, de abano mesmo. Aquela observação, entretanto, não foi um insulto, porque Maria achava que as orelhas de velhos eram, de fato, as mais bonitas. Beijaram-se pela primeira vez. Começou, a partir daí, o fim de José.

Conviver com as borboletas não era difícil, mas, agora, havia também as flores. Cada passo dado fazia brotar um lindo jardim florido. José, que era professor, precisou pedir licença, porque os funcionários da limpeza estavam exaustos de, todos os dias, tirarem imensos jardins das salas de aula. A casa de José virou uma espécie de Campos Elísios. Grande ironia, já que, segundo a mitologia grega, é lá que habitam as almas dos bondosos de coração. A diferença era que José estava muito vivo.

José fazia brotar o jardim, Maria, por conseguinte, era a jardineira. Era ela a razão de ser de todo aquele esplendor de rosas, flores, plantas e borboletas. O amor de Maria era o terreno fértil onde surgia a vida engendrada pelo coração de José. De repente, o universo de José virou um imenso mundo perdido, um jardim secreto, mil vezes mais bonitos que aqueles da Babilônia. Agora, não havia apenas borboletas e flores. O amor de Maria e suas constantes visitas deram-lhe um Éden de presente. Aquele era o mundo a que pertenciam os dois amantes. Não havia, em lugar conhecido, terra mais bonita. José, agora, dedicava-se apenas a esse jardim, devotamente. Era fruto de seus sentimentos, era a tradução da força que fazia pulsar sua alma.

Um dia, Maria não apareceu como de costume. José esperou sentado, próximo a um riacho que brotara dias antes. José esperou, mas Maria nunca mais apareceu. O mais curioso é que, a despeito da ausência, o jardim continuava a brotar com toda fúria. Nada morria, não caía uma única folha ou flor. As borboletas multiplicavam-se na mesma medida em que se multiplicavam os dias sem Maria. Em certo ponto, José não podia mais se locomover. Estava se afogando na vida que rebentava de seu amor pela ausente Maria. Os amigos tentaram resgatá-lo, mas, por mais que procurassem, não encontravam o pobre apaixonado no meio de tanda vida. Finalmente, após muito esforço, José conseguiu se movimentar apenas o suficiente para ficar deitado. Sufocado por tanto amor traduzido naquele jardim, finalmente, expirou e morreu.

domingo, 21 de agosto de 2011

O funk e a libertação feminina


Catem esta letra de um funk carioca:

Comece a me chupar
Metendo pra lá e pra cá

Comece a me chupar [2x]
Depois come o meu cuzinho
Só pra me fazer gozar
Comece a me chupar [2x]
Depois come o meu cuzinho
Só pra me fazer gozar

E vai chupando, e vai chupando,
e vai chupando, vai chupando, vai chupando, chupando, chupa gostoso!
E vai chupando, e vai chupando,
e vai chupando, vai chupando, vai chupando, chupando, chup.. que isso!

Agora para! E vai metendo..
E vai metendo, vai metendo, vai metendo e vai metendo, mete gostoso!
Agora para! E vai metendo..
E vai metendo, vai metendo, vai metendo e vai metendo, vai metendo!

Eu ja to louca, não to mais aguentado
Esse cara é pirocudo, ele tá é me rasgando
Eu ja to louca, não to mais aguentado
Esse cara é pirocudo, ele tá é me rasgando

Não discutiremos aqui o valor estético da obra. Não cabe, nesta discussão, valores artístico a respeito de arranjos, melodia, estrutura das rimas, entre outros. Vamos nos ater ao seu conteúdo sociológico, aos ditos e não-ditos.

A primeira coisa que nos chama a atenção é o fato de que a letra, pululando de palavrões e referências ao ato sexual, ressaltando a animalidade com que ele é praticado, é cantado por uma mulher. Podemos dizer que, historicamente, o caminho percorrido pelo funk, para chegar ao balaio de palavrões que é hoje, é relativamente curto. No começo da década de 1990, presenciamos esse estilo musical com uma função majoritariamente de cunho político. O funk era transgressor na medida em que contestava o sistema político-econômico imposto pelo capital. Era, de fato, uma espécie de grito dos excluídos, música feita por pobres para pobres. Em princípios do século XXI, o Bonde do Tigrão inaugura, nacionalmente, um tipo de música mais despolitizada a qual caiu, quase que instantaneamente, na lógica capitalista de mercadorização. Nessa nova expressão do funk, a cultura política dá lugar à cultura do sexo. Temos, assim, um grupo de homens e mulheres que expressam, a despeito de suas condições econômicas de origem, toda uma carga sexual que, outrora, era mascarada pelas letras e poesias engendradas pelo amor do tipo romântico. O tempo, entretanto, ainda não era das mulheres, apesar de, algumas delas, arriscarem uma ou outra canção.

Nessa qualidade de música, a mulher aparece como objeto do desejo sexual do homem. A lógica machista expressa sua dominação por meio da submissão sexual da mulher. Até aqui, nenhuma novidade. A diferença é que, agora, o funk passa a anunciar, para o público, práticas que ousavam se revelar apenas no âmbito da alcova, do privado. Entretanto, por mais que o funk, na primeira metade da década de 2000, reproduza tal lógica da dominação masculina, a revolução já desponta. Na música "um tapinha não dói", que gerou protestos feministas por todo o Brasil, um bando de marmanjos ordenam que uma mulher faça poses sensuais para eles. A surpresa acontece no refrão: uma voz feminina diz, em bom som, que "um tapinha não dói". Embora dominada por homens, naquele momento, a mulher anuncia sua sexualidade! Ainda que seja para dizer que gosta de um tipo de prática sexual que muitos julgam humilhante, o feminino finalmente se expressa. A funkeira Tati Quebra-Barraco, então, nessa mesma época, completa a dialética sexual do funk. Uma das primeiras mulheres a anunciar a posse de sua sexualidade, Tati Quebra-Barraco virou revolucionária.

O mais impressionante, e que, obviamente, chama-nos mais a atenção, é que essa libertação sexual feminina veio justamente das camadas mais carentes da população. Constantemente acusados de retrógrados e conservadores, os pobres dão um soco no estômago da pretensa revolucionária classe média e da inteligentsia. Ao reproduzir a lógica da dominação masculina, o funk carioca abriu as portas para um outro tipo de revolução: a sexual. Ironicamente, como previu Marx, mas agora com sexo no lugar da exploração capitalista, o povão comandou a revolução. Era de se esperar que, inevitavelmente, a mulher passaria de agente passivo para ativo na declaração de sua sexualidade, posto que, quem tem voz, fala.

No início da década de 2010, os discursos femininos, no funk, estão saturados de referência ao sexo. É como se fosse uma manifestação histérica de uma sexualidade que foi reprimida durante séculos e que, agora, explode a plenos pulmões (e por que não dizer a plenas vaginas?). Valesca Popozuda, expoente desse tipo de funk sexualmente obsessivo, longe de merecer os títulos de promíscua, vagabunda ou prostituta, é, na minha opinião, a salvadora das mulheres. A genialidade de Valesca reside justamente na quebra da imagem paradigmática da mulher tradicional. Valesca Popozuda desponta, finalmente, para o bem do feminino, como a anti-Nossa Senhora. Que me perdoem os católicos, mas Maria é a imagem mais perversa e opressora do feminino. É a mulher que, milagrosamente, sem exercer sua sexualidade, torna-se mãe. É a mulher que, sem a necessidade do sexo, que nunca a pertenceu, transfigura-se na imagem ideal da mulher: submissa, sempre intercessora, porém nunca no comando, resignada, melacolicamente gentil, prendada e, principalmente, afastada do sexo. Valesca Popozuda, embora não literalmente, como fez certo pastor da Igreja Universal, chuta a santa. A mulher, agora, é dona da própria vagina, comanda o próprio gozo, escolhe seu parceiro, exerce livremente sua sexualidade, domina o macho, ridiculariza-o, zomba de sua sexualidade. A mulher, finalmente, liberta-se do jugo masculino do exercício de sua sexualidade mais plena.

A despeito de nossa natureza machista, que sempre procuro domar em mim, as garotas funkeiras tomam a linha de frente, muitas vezes de maneira mais eficaz que certas feministas, no espaço público que é devido à mulher. Embora muitos argumentem que o combate principal trava-se no campo da política, os tempos hodiernos mostraram que o campo fértil das revoluções brota da e na cultura. Oprimidas pelo sexo, libertas pelo sexo. Vida longa à Valeska Popozuda e a sua vagina, pois ambas ousaram, sem vergonha (isso mesmo, sem o hífen), desafiar os falos dominantes.
Despeço-me com um vídeo que traduz, de maneira mais fiel e menos intrincada, o que quis dizer com esse texto. Aproveitem:

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O mito da solteirice como bem supremo

Hoje é dia do solteiro. Seria um dia como outro qualquer, se não fosse por uma mensagem que vi no facebook. Segue a danada, na íntegra:

‎S.ociedade
O.rganizada
L.ivre de
T.raição e
E.rros, Total
I.ndependência, sem
R.emorsos ou
O.brigações

Quem corrobora com esse pensamento tem, para mim, uma opinião muito equivocada, não a respeito do ser solteiro, mas do se relacionar. Eu não sou a pessoa mais namoradeira do mundo, é verdade. Tive apenas dois relacionamentos com tempo relativamente duradouro. Eu, entretanto, tenho a mania de pensar sobre "a vida, o universo e tudo o mais" demasiadamente. Também descobri que a experiência de vida alheia é uma fonte infinita de aprendizado tão ou mais rica que a nossa própria.

Há quem acredite que começar um relacionamento signifique necessariamente a perda da liberdade, da individualidade e, pior, da própria identidade. Parece-me que a acentuação do individualismo liberal escorreu da economia e da filosofia política para a vida afetiva. Há muitos textos na Sociologia dedicados ao estudo sobre confiança, laços afetivos e relacionamentos nos tempos atuais, e minha afirmação anterior poderá ser corroborada por esses textos. Nenhum relacionamento, absolutamente, poderá reivindicar a posse integral do outro. Não é uma questão de duas metades que se complementam, mas de dois inteiros que se administram. Quando duas pessoas decidem iniciar uma relação, estão ali dois indivíduos independentes, que carregam as próprias experiências, visões de mundo, valores e vontades. A vida a dois é, necessariamente, a convivência pacífica e profícua desses dois universos que podem, ou não, complementarem-se. Quem perder a liberdade em um namoro ou casamento, por exemplo, nunca teve um companheiro de fato. Teve patrão, chefe ou senhor.

Não estou falando que se deve seguir a vida ignorando o outro, como se apenas o seu universo fosse o mais importante ou aquele que sobrepuja os demais. Aqui, então, é imprescindível o uso da razão, porque nem só de sentimento viverá uma relação a dois. Tenta-se um constante e incansável administrar de vontades, contradições e planos. Relacionar-se é a arte de fazer cruzar caminhos que, de outra maneira, seriam divergentes. O motor da história dos relacionamentos é, então, no sentido marxista mesmo, uma luta, um conflito não entre classes, mas entre personalidades. Mas, ao contrário do modelo marxista de desenvolvimento da história dos homens, enquanto existir amor, as contradições não devem gerar o fim, mas crescimento. Não é balela quando dizem que as adversidades amorosas podem fazer crescer. Elas podem e devem.

Engana-se quem pensa que liberdade rima com solteirice. É possível se relacionar e, ao mesmo tempo, ser livre de traição, dependência e obrigações. Todo relacionamento, na atualidade, começa voluntariamente e voluntariamente deve seguir em frente, óbvio. Conheço uma mulher que, durante 14 anos, foi tiranizada pelo marido violento. Ela foi sugada, explorada, marginalizada, agredida, ameaçada e humilhada sistematicamente durante mais de uma década. Embora a burocracia dizia que ela era casada, eu não consiguia parar de pensar que ela era, de fato, uma escrava. Toda forma de amor deve primar pela liberdade, pois é somente livre que o indivíduo tem espaço para ser voluntário, e todo sacrifício requer incontestavelmente a vontade espontânea de sacrificar. Sim, amor também é sacrifício. Quando se fala em sacrifício, pensa-se em uma troca desvantajosa. Devo lembrar que, em todas as sociedades cujo ritual so sacrifício era o mote de alguns ritos religiosos, a parte sacrificada era compartilhada entre aquele que oferecia e aquele que recebia. Não era, de forma alguma, uma via de mão única entre homem e divindade. Era, acima de tudo, uma relação de permuta entre um e outro. É esse tipo de sacrifício que deve existir nos relacionamentos.

Repito: quem acredita que se relacionar é perder a liberdade e a individualidade nunca teve namorado/namorada, mas senhor. Em um relacionamento, só há um senhor: o respeito. Respeito às liberdades e às individualidades, respeito ao amor que se cultiva e se colhe em retorno, respeito às limitações. Quando se respeita, todo o resto se acrescenta naturalmente depois.