domingo, 27 de junho de 2010

Doença


- Doutor, antes do senhor abrir o exame, o senhor acha que é câncer?
- (...)
- Veja bem, doutor. Eu sinto umas dores no abdômen. Umas pontadas, assim, no lado esquerdo, sabe?
- Hm.
- Não sei, doutor. Pode ser câncer, sim. Câncer de próstata, porque, dia desses, eu não consegui uma ereção completa, 100%, sabe?
- (...)
- Veja o senhor, doutor. Eu acho, inclusive, que meu cabelo tá mais quebradiço, tá caindo muito, doutor. Não dizem que câncer faz cair o cabelo? Se bem que meu pai e meu avô eram calvos... Mas, eu sou novo, doutor. Tenho 34 anos ainda, sabe?
- (...)
- Espera ainda, doutor. Abre agora não. 'Tou um pouco nervoso. Deixa eu me acalmar aqui...
- (...)
- E essas manchas, doutor? Tem uma mancha no meu braço esquerdo e outra no meu peito. 'Tá vendo? Aqui, perto do mamilo. Essa manchinha. SERÁ QUE É SARCOMA DA KAPOSI, DOUTOR? Hein, doutor? Olha, doutor, eu não tenho HIV, certo? Não pode ser sarcoma de Kaposi, certo? Hein? Certo?
- (...)
- É bem capaz de ser câncer mesmo, doutor. Meu apetite tem diminuído, e meu peso também. E olhe que minha mulher cozinha bem. Qualquer dia desses vá almoçar lá em casa, como meu convidado de honra. Também ouvi falar que câncer faz a pessoa perder peso e tudo o mais. Anorexia também, né, doutor? Mas eu não sou anoréxico, não. Mas eu prefiro ter anorexia. Anorexia deve ser melhor que câncer, né? É só comer, que melhora.
- (...)
- Vai lá, doutor, pode abrir, eu agüento. Sou forte. Já 'tou preparado.
O médico abre o envelope do exame.
- "Seu" Maracajá, o senhor tem verme.
- Ah! Jura? Me receita um sanoverme ou um licor de cacau, então.

Casamento

Dona Eusébia acordou com o barulho do despertador, às 5 da manhã. Ao lado, o marido roncava desesperadamente. Eram casados há 27 anos. Diariamente, Eusébia despertava, há exatos 27 anos e 36 dias, às 5 da matina, para preparar o café do esposo. Ele engordara muito nos últimos anos. O pior é que a infelicidade da dona de casa aumentava proporcionalmente à camada de tecido adiposo de seu cônjuge. Com o tempo, ele ficou desleixado. Com o tempo, não. Talvez sempre tenha sido assim. Deve ter trazido o costume para o relacionamento. Ficou relapso com a aparência e, principalmente, com o casamento. Parecia que, no fundo, procurava uma empregada doméstica, não uma esposa. Dona Eusébia sentia-se uma mucama, para quem o marido, senhor cruel, servia apenas para servir a mesa todos os dias e a vagina duas vezes por semana, no máximo. Com 47 anos, nunca tivera um orgasmo. Certa feita, ao ler uma dessas revistas femininas, descobriu a masturbação, mas foi descoberta pelo marido, em pleno ato lascivo. Levou uns tapas e a alcunha de vagabunda.
Às vezes, pensava ser uma escrava, mas, ao contrário desta, não podia comprar sua alforria, posto que estava gravado, em seu DNA, como uma má-formação congênita, os laços do sagrado matrimônio. Para ela, ser mulher significava estar casada. Então, para dona Eusébia, ser mulher era, de fato, sofrer. De uns tempos para cá, o marido dera para ter amantes. Pior: tinha que entregar os recados das vadias que ligavam para ele. O padre a aconselhou a agüentar a situação, pois "o que Deus uniu, o homem não pode separar". Tudo bem, enfim. Ser mulher também passou a ser uma imposição, um castigo divino. Não tiveram filhos, e o marido jogava, constantemente, em seu rosto, que seu ventre era uma terra seca, onde não poderia brotar sequer a mais desprezível erva daninha. Certamente, era culpa dela mesmo. Todas as amigas eram mães, exceto ela. Por muitos anos, esperou que Deus, como fez a Sara, esposa de Abraão, abrisse-lhe a madre, mas de tanto esperar, acreditou que o Senhor havia perdido a chave.
Era costume pular da cama e ir direto para a cozinha, toda descabelada e remelenta, fazer os serviços domésticos antes do despertar do marido. Não queria que ele ficasse violento e ranzinza logo pela manhã. Mas, neste dia, dona Eusébia fez diferente. Levantou-se e postou-se em frente ao espelho. Alinhou os cabelos já um tanto grisalhos, não por causa da idade, mas por conta do sofrimento. Retirou, da gaveta da penteadeira, um pequeno tesouro: um batom que ganhara em um amigo secreto de Natal. Seu único presente em anos. Passou suavemente nos lábio finos, prendeu os cabelos em um infantil rabo de cavalo, calçou a velha sandália e foi para a varanda. Deu um última olhada para o paquiderme com que se casara. "Morra gordo, filho de uma puta", pensou e riu. Saltou. Dona Eusébia, escrava doméstica e, por vezes, sexual, nunca fora livre em 27 anos e 36 dias, mas seria livre, agora, nos 43 metros que a separavam do chão.

sábado, 26 de junho de 2010

Orgia livresca

Este é um texto que escrevi em 2006, quando fiz meu curso de Português no Zarinha Centro de Cultura. Não modifiquei o conteúdo, apenas realizei algumas correções no português. Pretendo também, como foi meu projeto inicial, continuar com a segunda parte deste conto. Eis, então, a primeira parte:



Todos sabem que livros só podem ser criados em cativeiro, assim como é de conhecimento geral o fato de que, por fatalidade do destino, nunca se encontrou uma forma de fazer com que se reproduzissem livremente em seu habitat natural. Trágico destino, ao contrário do que possa pensar o senso comum, incomodou durante muito tempo os folhosos, sem que estes expusessem seus descontentamentos pela ausência de vida sexual. Talvez a maioria não tenha percebido, mas toda biblioteca é, acima de tudo, ambiente de luxúria e devassidão. A leitura viola, sem dó nem piedade, o pensamento e a imaginação humanas. Aquele que não se deleita na lascívia e sensualidade de páginas e páginas de saber é dono de um coração amargurado, de cega consciência e de uma frigidez capaz de extinguir toda espécie de ser vivo que caminha por sobre a face da terra.

Cansados de ver sua existência depender dos métodos de laboratório, como máquinas de escrever, computadores, canetas, xerox e impressão, os livros decidiram promover um festim que lhes permitisse os prazeres da concepção sexuada. São desconhecidas, deste que vos escreve, as forças, diabólicas ou divinas, que impeliram os exemplares de cada título a saltarem de suas respectivas estantes e, pé ante pé, ou melhor, página ante página, reunirem-se em assembléia geral, para decidir os preparativos do celulótico bacanal. Ficou combinado que poderia comparecer toda obra que se sentisse à vontade e disposta a interagir com seus iguais. No dia, hora e local marcados, era tamanho o festival de papel impresso, que poria a Biblioteca de Alexandria em infinita vergonha.


Estavam presentes os mais variados volumes e títulos, todos ansiosos para gerar proles de folhetins e edições de bolso. Os primeiro casais começavam a se formar e já entravam imediatamente nas preliminares, pois o tempo era curto, e a gestação, menor ainda, uma vez que uma gravidez livresca não dura mais que alguns segundos. Havia um grupo composto por aqueles mais vendidos e pouco criteriosos, tratando-se, pois, de literatura barata e chula, de baixa qualidade e conteúdo duvidoso. A animação desta turba de promíscuos, que fazia exalar um cheiro de coito à flor da página, deu o direcionamento, mesmo para aqueles outros conjuntos de reconhecida eminência, da inusitada celebração licenciosa: uma orgia cultural.

Morte

Sentou-se na cadeira, acendeu um cigarro e segurou a xícara de café morno e com muito açúcar, como gostava. Posicionou-se de frente para o relógio da parede. Um relógio vagabundo, comprado naquelas lojas de 1,99, porque não gostava de relógio de pulso. Sabia que iria morrer naquele dia, exatamente às 21h47. Não sofria de nenhuma doença grave previamente diagnosticada, não seria assassinado e tampouco se mataria. Cairia morto. Simples assim. Tinha essa impressão desde tenra idade, quando percebeu que a vida, neste mundo, não lhe pertencia. Sentia-se um estranho, um deslocado, parecia que passava breves férias cá no mundo dos vivos. Não sofria de depressão, antes, o contrário, tinha um apurado senso de humor, e sarcasmo e ironia eram os pontos altos de suas falas.
Acostumou-se com a idéia da morte e até a comunicava para os mais próximos. Certa feita, em uma consulta a um psicólogo, foi perguntado como se via daqui a 10 anos. "Morto", respondeu serenamente. Com o passar do tempo, os sinais da morte anunciada se intensificavam. O mundo começou a lhe dar fadiga. Cansava-se das pessoas, dos livros, dos filmes, da vida, enfim. Por vezes, acordava muito cedo e passava horas sentado na cadeira. Esta mesma cadeira que, agora, seria seu leito de morte. Há uns meses, começou a sentir dores estranhas na região do umbigo. Foi ao médico, gastou milhares de reais em um check-up completo e nada foi diagnosticado. "Você tem dores imaginárias", disse o médico. "Dores do além", pensou em resposta. Interpretou que a Ceifeira já mandava seus recados, como se dissesse que o momento final se aproximava. Percebeu que aquelas dores estranhas eram, na verdade, um segundo cordão umbilical, que não ligava a qualquer placenta, mas à vida.
Espiou o relógio mais uma vez: 21h43. Procurou uma posição mais confortável, cuidou para que, na hora de sua partida, o cigarro não incendiasse o pequeno apartamento. Não fazia questão de derrubar a xícara com café, achava dramático, como nos filmes. Olhou para a mesa de canto, a fim de averiguar se as instruções de seu velório estavam ali. Os livros seriam doados aos amigos mais próximos assim como os filmes, muitos dos quais pirateados de um simpático camelô. Às 21h45, o umbigo começou a doer. Doía como nunca antes. Chegou mesmo a conferir se algum alien não lhe saltaria da barriga, tamanha era a dor que o atormentava. Teve o cuidado para só derrubar o café na hora em que sua alma fosse levada pela gadanha da Ceifeira Sinistra. Desligou o celular, para não ser incomodado na hora da partida. Às 21h46, a dor o fez soltar a xícara. "Droga!", pensou. "Foi-se embora meu momento Cidadão Kane...". O relógio bateu 21h47, e as lamentações acabaram.
21h48. Apagou a bituca do cigarro no cinzeiro, juntou os cacos da xícara e foi dormir. Teria trabalho pela manhã cedo.